Do Madhurya Kadambini, de Srila Visvanatha Cakravarti Thakura
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Após oferecer suas reverências ao Senhor Caitanya Mahaprabhu, o inaugurador do movimento de Sankirtana, e a Srila Rupa Gosvami, Seu servo mais confidencial, Visvanatha Cakravarti efetivamente inicia seu discurso em glorificação a Bhakti-devi.
A Suprema Personalidade de Deus e o Brahman O Sruti, ou Veda, oferece irrefutáveis evidências a estabelecerem a Verdade Absoluta. O Taittiriya Upanisad (2.5.2) declara que o Brahman é o suporte e o estai (brahma-puccham pratistha) daquele que é a corporificação de ilimitada e absoluta bem-aventurança (param-anandamaya-purusa), a existência deste sendo dependente do Brahman. A partir desta declaração, o Sruti concede preeminência para o Brahman; em um verso posterior (2.7.2), entretanto, o Taittiriya Upanisad declara que o Senhor Supremo é o reservatório de rasa, ou amor extático (raso vai sah), e que, com o alcance de tal reservatório de prazer extático, que é o Senhor Supremo, mesmo aquele Brahman que corporifica brahmananda é submerso em sublime felicidade (rasam-hy eva-ayam labdhanandi bhavati). Esta declaração afirma claramente que a Suprema Personalidade de Deus é superior a tudo, inclusive ao Brahman. Destarte, aquele que é definido como o reservatório de prazer extático, rasa-svarupa, é descrito no Srimad-Bhagavatam – a melhor das escrituras e a essência de todas elas – como Krsna, o filho de Maharaja Nanda, a corporificação da rasa.
O Srimad-Bhagavatam 10.43.17 declara, mallanam asanir nrnam nara-varah strinam smaro murtiman: “Os lutadores viram o Senhor Krsna como um trovão; os homens de Mathura, como o melhor dos homens; as mulheres, como o Cupido em pessoa”. Esta afirmação deixa claro que o desenvolvimento gradual da felicidade espiritual depende inteiramente de rasa e do nível de sua intimidade. O próprio Senhor Supremo declara no Bhagavad-gita (14.27), brahmano hi pratisthaham: “Eu sou a base do Brahman impessoal”. O Senhor Supremo descreve-Se desta maneira a fim de revelar Sua posição real. As escrituras Védicas, portanto, tanto o Sruti quanto o Smrti, apontam que Krsna, o filho de Maharaja Nanda, é o Senhor Supremo, situado eternamente em bondade pura.
Bhakti-devi É tão Auto-Manifesta e Independente quanto o Senhor Krsna é o primordial Senhor Supremo, que Se manifesta através de Seus nomes, formas, qualidades e passatempos, independente de quaisquer causas ou condições. Krsna revela-Se, por Sua própria vontade, de tal modo que as almas espirituais, ou jivas, possam experienciá-lO com seus sentidos, mente e inteligência.
Assim como é mediante Seu desejo independente que o Senhor Supremo aparece como o Senhor Krsna na dinastia Yadu, ou como o Senhor Ramacandra na dinastia Raghu; é também mediante Seu desejo pessoal que Ele Se revela às jivas, as quais O percebem através de seus sentidos – em outras palavras, é pelo desejo e pela graça do que Senhor Supremo que as jivas podem obtê-lO. Dado não haver diferença entre a energia e o princípio energético – neste caso, entre bhakti-devi e o Senhor –, bhakti-devi não precisa de nenhuma causa ou condição para manifestar-se, senão que aparece em qualquer lugar de sua escolha. No Srimad-Bhagavatam 1.2.6, portanto, a devoção amorosa é descrita como sendo livre de qualquer causa ou motivação (ahaituki), o que advoga em favor da tese de que bhakti não conhece impedimentos oriundos de fonte alguma no que diz respeito à sua liberdade de aparecer para os sentidos das jivas quando quer que queira. O uso do termo apratihata no verso citado, cujo significado é “ininterrupta”, indica que nada é mais prazeroso do que bhakti, outra razão a impossibilitar que seja estorvada.
O Outorgamento da Devoção Pura
No Srimad-Bhagavatam (11.20.8), declara-se, yadrcchaya mat-kathadau jata sraddhas tu yah puman: “De uma maneira ou de outra, alguém, por boa fortuna, desenvolve fé no ouvir sobre Mim”. Neste verso, bhakti é descrita pela palavra yadrcchaya, ou “volição própria”. Novamente, no comentário de Sridhara Svami a este verso, ele escreve que bhakti é livre para agir como queira. O significado dicionarístico para a palavra yadrcchaya é “espontâneo e independente”. Algumas pessoas interpretam o significado de yadrcchaya – palavra esta que também aparece no Srimad-Bhagavatam 11.20.11, mad-bhaktim va yadrcchaya – como “uma espécie de ventura ou boa fortuna”. Tal explicação, entretanto, é defeituosa, e sua falácia é exposta com o questionamento da origem dessa boa fortuna. Por exemplo, essa fortuna é oriunda de atividades piedosas? Se aceitarmos que a ventura ou boa fortuna resultante de atividades piedosas produz bhakti, isso torna bhakti subserviente às atividades piedosas, o que é inaceitável, haja vista que isso infringe o princípio já estabelecido da natureza de bhakti como auto-manifesta e independente. Caso se aceite que essa ventura ou boa fortuna não é produto de atividades piedosas, admite-se que a mesma é caprichosa, imprevisível e, portanto, imperfeita. Como uma coisa imperfeita pode produzir algo perfeito?
Se alguém propuser que a causa de bhakti é a misericórdia do Senhor, então esse proponente terá que buscar uma razão para essa misericórdia. Essa declaração, por conseguinte; suscitando a necessidade de outra explicação que exigirá uma fastidiosa pesquisa, é inconclusiva em si mesma. Alguém talvez qualificasse melhor essa afirmação dizendo que a causa de bhakti é a misericórdia sem causa (nirupadhi) do Senhor. Se essa misericórdia é sem causa, então é necessário que se observe que ela é igualmente outorgada em todo lugar. Uma vez que não se observa que ela se recai sobre todos, isso implicaria a existência do defeito da parcialidade no Senhor. A misericórdia sem causa do Senhor, portanto, não pode ser aceita como a causa de bhakti.
Alguém talvez questione que o Senhor, de qualquer maneira, pune os demônios e protege Seus devotos – isso não é parcialidade? Este tipo de parcialidade que o Senhor demonstrar para com Seus devotos, porém, não implica um defeito no Senhor, senão que é um embelezamento em Seu caráter. Esta obrigação afetuosa do Senhor para com Seus devotos, que será detalhadamente discutida no capítulo oito, chama-se bhakta-vatsalya, e é o rei todo-poderoso a subjugar todas as demais qualidades do Senhor.
Com a proposição da misericórdia sem causa do devoto como a causa da devoção em outra pessoa, alguém talvez objete que a misericórdia do devoto, assim como a misericórdia do Senhor, pode ser parcial. Considerando o caso do madhyama-bhakta, é sabido que ele exibe sim parcialidade ou discriminação em seu ato de distribuir misericórdia. O Srimad-Bhagavatam (11.2.46) afirma:
isvare tad-adhinesu balisesu dvisatsu ca
“O devoto intermediário ou de segunda classe, chamado madhyama-adhikari, oferece seu amor à Suprema Personalidade de Deus, é um amigo sincero de todos os devotos do Senhor, mostra misericórdia para com as pessoas ignorantes que são inocentes, e negligencia aqueles que têm inveja da Suprema Personalidade de Deus”.
Em outras palavras, essa parcialidade é aceita como a característica natural do madhyama-bhakta. Visto que o Senhor é subserviente ao Seu devoto, Ele deixa Sua misericórdia seguir a misericórdia de Seu devoto – e não há irregularidade nisso. Não obstante, a causa dessa misericórdia a manifestar-se no devoto é a próprio bhakti residindo no coração dele, haja vista que a única causa que atrai a misericórdia do Senhor é a bhakti que reside permanentemente no coração do devoto puro. Assim, sem o devoto ter bhakti, não há possibilidade dele mostrar misericórdia para com outros ou antes ter a misericórdia de Krsna para si mesmo. Bhakti causa a misericórdia do devoto, que causa bhakti em outra pessoa. Bhakti causa bhakti. A natureza sem causa, independente e automanifesta de bhakti está, portanto, estabelecida.
O Senhor Supremo é Subserviente aos Seus Devotos Puros
A palavra ati-bhagya (extrema boa fortuna) no verso yah kenapyati-bhagyena jatasraddho'sya sevane, “aquele que se ocupa em serviço devocional com firme fé devido à boa fortuna extrema”, ganha um significado novo e mais profundo. Não mais se entende essa boa fortuna extrema como resultante de atividades piedosas pretéritas, mas como uma boa fortuna extrema decorrente da compaixão dos devotos puros.
Aqui, alguém talvez apresente o contra-argumento de que os devotos estão sempre sob o controle do Senhor, o que impossibilita que a misericórdia do devoto apareça primeiro, de maneira independente, e não como seguinte à compaixão sem causa do Senhor. Krsna pessoalmente soluciona este impasse declarando de modo muito aberto que Ele é voluntariamente subserviente ao Seu devoto puro, e concede preeminência à posição do devoto dando-lhe o poder de outorgar a própria misericórdia do Senhor.
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Parte 2 de 3
Bhakti é Causada por Niskama-karma?
Quando as jivas estão experimentando os resultados de suas ações passadas a se desenrolarem no palco do mundo material, o Senhor Supremo observa tudo como Paramatma; para com os Seus devotos, todavia, Ele mostra misericórdia especial. No Bhagavad-gita (18.62 e 6.15), Krsna diz, mat-prasadat param santim mat-samstham adhigacchati: “Meus devotos obtêm unicamente pela Minha misericórdia a paz suprema que repousa inteiramente em Mim”. Aqui, a palavra prasada significa a bondade que o Senhor mostra aos Seus devotos confiando a eles Sua potência da misericórdia, a qual é então distribuída às almas caídas, como já mencionado anteriormente.
Através de muitas declarações escriturais – como svecchavatara caritaih, ou sveccha mayasya –, pode-se entender que o Senhor aparece em conseqüência de Seu desejo pessoal. Apesar disso, a visão externa talvez leve a pessoa a dizer que a necessidade de aliviar o fardo da Terra é a causa do advento do Senhor. Da mesma forma, às vezes é dito que os deveres prescritos executados sem motivações pessoais (niskama-karma) agem como a porta para bhakti. Não há mal em tais declarações, isso caso saibamos compreender a natureza relativa delas. Apesar do pequeno mal, o Srimad-Bhagavatam 11.12.9 nega claramente que caridades, austeridades e assim por diante possam causar bhakti:
yam na yogena sankhyena dana-vrata-tapo-'dhvaraih
vyakhya-svadhyaya-sannyasaih prapnuyad yatnavan api
”Mesmo se alguém se ocupa com grande empenho no sistema de yoga mística, na especulação filosófica, na caridade, na observância de votos e penitências, na feitura de sacrifícios ritualísticos, no ensino de mantras Védicos a outros, no estudo pessoal dos Vedas ou entra na ordem de vida renunciada; ainda assim, esse alguém não pode Me alcançar”.
A despeito de tais práticas serem claramente negadas como causadoras de bhakti no verso supracitado; em outro verso seu, o Srimad-Bhagavatam declara:
dana-vrata-tapo-homa japa-svadhyaya-samyamaih
sreyobhir vividhais canyaih krsne bhaktir hi sadhyate
”O serviço devocional ao Senhor Krsna é auferido por caridade, votos estritos, austeridades e sacrifícios de fogo, por japa, estudo dos textos Védicos, observação de princípios reguladores e, com efeito, pela execução de muitas outras práticas auspiciosas“. – 10.47.24
Esta última declaração, contudo, refere-se à bhakti no modo da bondade material – um tipo de bhakti que é, na verdade, parte do sistema de jnana – e não à bhakti completamente espiritual, na categoria de prema, ou amor espontâneo. Outra explicação de alguns estudiosos é que, este verso, ao dizer “caridade”, refere-se a presentear o Senhor Visnu e Seus devotos; que, ao dizer “austeridade”, refere-se a jejuns como o jejum de ekadasi; e que, ao dizer “renúncia”, refere-se à rejeição do desfrute pessoal com vista a proporcionar desfrute ao Senhor. Nesta leitura, tudo se trata de práticas de sadhana-bhakti, e dizer que bhakti é obtida por meio de tais práticas, ou angas, não é incorreto, visto que isso é o mesmo que dizer que bhakti causa bhakti. Esta apresentação filosófica resume os diferentes possíveis contra-argumentos e estabelece mais uma vez o princípio de que bhakti é sem causa.
Karma e Jnana Dependem de Bhakti-Devi
Bhakti é o único meio para se obter completa perfeição. O Srimad-Bhagavatam 10.14.4 descreve como aquele que rejeita bhakti para adotar o caminho doconhecimento especulativo não logra ganho algum.
sreyah-sritim bhaktim udasya te vibho
klisyanti ye kevala-bodha-labdhaye
tesam asau klesala eva sisyate
nanyad yatha sthula-tusavaghatinam
”Meu querido Senhor, o serviço devocional a Vós é o melhor caminho para a auto-realização. Se alguém rejeita esse caminho e se ocupa no cultivo de conhecimento especulativo, esse alguém irá simplesmente se submeter a um processo difícil e laborioso, o qual não lhe dará o resultado desejado. Assim como alguém que debulha um folhelho de trigo vazio não obtém grão, aquele que simplesmente especula não obtém a auto-realização. Seu único ganho são problemas”.
O Srimad-Bhagavatam (1.5.17) assegura que, se alguém abandona suas demais ocupações em favor da prática de bhakti; mesmo caso não obtenha imediatamente a perfeição, não lhe há perigo algum:
tyaktva sva-dharmam caranambujam harer
bhajann apakvo ‘tha patet tato yadi
yatra kva vabhadram abhud amusya kim
ko vartha apto ‘bhajatam sva-dharmatah
“Pode ser que aquele que abandou suas ocupações materiais a fim de ocupar-se no serviço devocional ao Senhor caia às vezes enquanto em um estágio imaturo; não há possibilidade, porém, dele ser mal sucedido. Por outro lado, um não devoto, embora completamente engajado nos deveres ocupacionais, não ganha nada”.
Já o Srimad-Bhagavatam 10.14.5 descreve como os yogis no passado puderam atingir a perfeição em virtude do serviço devocional:
pureha bhuman bahavo ‘pi yoginas
tvad-arpiteha nija-karma-labdhaya
vibudhya bhaktyaiva kathopanitaya
prapedire ‘njo ‘cyuta te gatim param
“Ó Senhor todo-poderoso; no passado, muitos yogis neste mundo atingiram a plataforma do serviço oferecendo todos os seus esforços a Vós e fielmente cumprindo seus deveres prescritos. Através de tal serviço devocional, tornado perfeito pelos processos de ouvir e cantar sobre Vós, eles puderam compreender-Vos, Ó infalível, e puderam facilmente se render a Vós e alcançar Vossa morada suprema”.
Mediante estes três versos, vê-se que o resultado dos caminhos, respectivamente, de jnana, karma e yoga são dependentes de bhakti. Em oposição, para bhakti produzir seu resultado – prema-bhakti, amor espontâneo pelo Supremo –, ela não apenas independe completamente de karma, jnana e assim por diante, como tem sua pureza plenamente manifesta quando fora de contato com tais elementos, o que é confirmado por estas duas declarações do próprio Senhor Supremo:
na jnanam na ca vairagyam prayah sreyo bhaved iha
“Nem o cultivo de conhecimento nem a renúncia são benéficos na prática de bhakti”. – SB 11.20.31
dharman santyajya yah sarvan mam bhajeta sa tu sattamah
”Aquele que rejeita todos os caminhos e simplesmente Me adora é o melhor entre os homens”. – SB 11.11.32
Bhakti-devi, ao invés de ser dependente de outros processos, concede a eles sua potência de modo que eles possam oferecer os resultados desejados. Se é ela própria quem investe tal poder a eles, deve-se entender que bhakti-devi é capaz de pessoalmente oferecer os mesmos resultados, daí o Srimad-Bhagavatam 11.20.32-33 afirmar:
yat karmabhir yat tapasa jnana-vairagyatas ca yat
yogena dana-dharmena sreyobhir itarair api
sarvam mad-bhakti-yogena mad-bhakto labhate ‘njasa
“Tudo o que pode ser obtido através de atividades fruitivas, penitências, conhecimento, desapego, yoga mística, caridade, deveres religiosos e através de todos os outros meios perfectivos de vida é facilmente obtido pelos devotos através do serviço amoroso a Mim”.
De modo a enfatizar por meio da contrastação, pode-se perguntar: Qual é a utilidade de obter tais resultados sem bhakti? O Hari-bhakti-sudhodaya 3.11 responde:
bhagavad-bhakti-hinasya jatih sastram japas tapah
apranasyaiva dehasya mandanam loka-ranjanam
”O nascimento nobre de uma pessoa, seu estudo dos Vedas, seu cantar de mantras, observação de penitências e assim por diante são todos inúteis caso ela seja destituída de devoção, ou bhakti. Não são nada além de enfeites em um cadáver”.
Continua...
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Parte 3 de 3
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Bhakti Independe de Condições Externas e de Pureza Interna Preliminar
Assim como a função apropriada do corpo depende da presença da alma; similarmente, yoga, jnana, karma e assim por diante são dependentes de bhakti. Karma-yoga, especificamente, é efetiva unicamente quando as condições apropriadas estão presentes: tempo, lugar, ingredientes, executor, circunstâncias e assim por diante devem ser auspiciosos e precisos, como se descreve detalhadamente nas escrituras Védicas. Nenhuma dessas estipulações, no entanto, regem a prática de bhakti, o que é verificado por esta afirmação do Visnu-dharmottara:
na desa-niyamas tatra na kala-niyamas tatha
nocchistadau nisedhas ca sri-harer namni lubdhakah
“Ó caçador! No atinente ao cantar do santo nome ou à execução de outros processos de serviço devocional, não há regras rígidas e severas dependentes de tempo, lugar, circunstância, etc. Com efeito, podem-se cantar os santos nomes mesmo em um estado contaminado”.
Bhakti é definitivamente capaz de outorgar perfeição absoluta sem depender de qualquer coisa, nem mesmo de fé. O Padma-Purana, prabhasa-khanda, declara:
sakrd api parigitam sraddhaya helaya va
bhrguvara nara-matram tarayet krsna-nama
Embora na prática de bhakti a qualificação do praticante não tenha relevância, haja vista que o nome o libertará quer cante pura ou impuramente; o mesmo não pode ser dito de karma-yoga, na qual até mesmo o menor desvio de suas muitas regras torna-se um grande obstáculo para o progresso. No verso 52 do Paniniya-Siksa, encontramos o seguinte verso:
mantro hinah svarato varnato va
mithya prayukto na tam artham aha
yathendra satruh svarato 'paradhat
sa vaga vajro yajamanam hinasti
“Se um mantra é entoado ou pronunciado incorretamente, o mantra não apenas não produzirá o efeito desejado, como poderá produzir um efeito nocivo, como quando, no sacrifício, Tvasta Rsi pronunciou erroneamente as palavras indra-satru, pronunciando “inimizado por Indra” ao invés de “inimigo de Indra”, o que posteriormente se revelou um mortal raio a Vrtrasura”.
Similarmente, em jnana-yoga, as condições são que o jnana-yogi, já no começo da prática, deve ter seus sentidos internos – a saber, a mente, a inteligência e a consciência – purificados, o que decorre da execução de karma sem desejos pessoais (niskama). Em razão de tal dependência; se, acidental ou deliberadamente, o jnana-yogi comete algum ato impróprio, mesmo que muito pequeno, ele é condenado pelas escrituras como uma pessoa que comeu o próprio vômito (SB 7.15.36). Embora personalidades como Kamsa, Hiranyakasipu e Ravana fossem muito eruditos e jnana-yogis consumados, são figuras infames, condenadas pela História por suas aberrações morais.
Embora o menor indício de profligação penalize o jnana-yogi, levando seus preceptores espirituais a condenarem-no ao ostracismo; no caso de bhakti-yoga, o caminho do serviço puro, o devoto, mesmo se for contaminado por luxúria, cobiça e outros defeitos, é possuidor da qualificação, ou adhikara, para dar início ao processo. Posteriormente, por meio da prática de bhakti – que, como já se advogou, é completamente independente e transcendental a todas as regras e regulações –, o coração e a consciência do devoto se tornam livres de todas as máculas. Isto é explicado pelo verso 10.33.39 do Srimad-Bhagavatam (10.33.39):
vikriditam vraja-vadhubhir idam ca visnoh
sraddhanvito 'nusrinuyad atha varnayed yah
bhaktim param bhagavati pratilabhya kamam
hrd-rogam asv apahinoty acirena dhirah
“Qualquer um que, com fé, ouça ou descreva os divertidos casos amorosos do Senhor com as jovens gopis de Vrndavana; tendo alcançado o serviço devocional puro ao Senhor, tornar-se-á sóbrio e conquistará a luxúria, a doença do coração”.
Pelo tempo do verbo alcançar – “tendo alcançado”, ou pratilabhya –, este verso deixa claro que bhakti primeiramente se manifesta no estágio em que ainda há desejos luxuriosos no coração, e então os desejos luxuriosos são extirpados. Ao contrário de jnana-yoga, que depende da purificação prévia de niskama-karma-yoga; prova-se mais uma vez, dessarte, que bhakti-devi é supremamente independente, ou parama-svatantra.
O Bhakta-Yogi Situa-se Acima de Qualquer Censura
Muito embora impurezas como a luxúria e outras às vezes apareçam no devoto, as escrituras de modo algum condenam esse devoto. No Bhagavad-gita 9.30, o Senhor Krsna diz:
api cet su-duracaro bhajate mam ananya-bhak
sadhur eva sa mantavyah samyag vyavasito hi sah
“Mesmo que alguém cometa a mais abominável atividade; se ele estiver ocupado em serviço devocional, ele deve ser considerado santo, pois ele está apropriadamente situado em sua determinação”.
Também no Srimad-Bhagavatam 11.14.18, o Senhor afirma:
badhyamano 'pi mad bhakto visayair ajitendriyah
prayah pragalbhaya bhaktya visayair nabhibhuyate
“Meu querido Uddhava, caso o Meu devoto não tenha conquistado inteiramente seus sentidos, eles talvez seja atormentado por desejos materiais, mas, devido à sua inflexível devoção por Mim, ele não será derrotado pela gratificação sensorial”.
A partir destas declarações autorizadas, podemos concluir que, a despeito de falhas de caráter, as escrituras jamais censuram os devotos. O aparecimento dos Visnudutas – os mensageiros do Senhor Visnu – no momento da morte de Ajamila prova que ele era um devoto do Senhor. Na hora da morte, valendo-se de seu último suspiro, ele, movido pela afeição por seu filho, chamou pelo seu nome, Narayana, o que se categorizou como o cantar nama-abhasa, o cantar que alude indiretamente ao nome do Senhor. Ajamila, a despeito de qualquer coisa, não sofre censuras, senão que é universalmente glorificado e aceito como santo.
Conclusão
Para o karma-yogi, a chave do sucesso está na consideração apropriada de tempo, lugar e circunstância. Em jnana-yoga, a purificação do coração é o ingrediente essencial para o progresso. Em ambos os casos, o mais ínfimo desvio neutraliza o sucesso. Já bhakti é o próprio elixir da vida para esses caminhos, e se vê que, sob todos os aspectos, os caminhos de karma, jnana e yoga são dependentes de bhakti, esta sendo, por sua vez, completamente independente, livre de um severo corpo de regras e jamais obstruída por qualquer desqualificação.
Certamente apenas um tolo diria que bhakti é apenas um meio para a obtenção de jnana, o que se mostra insustentável dado as escrituras declararem que jnana outorga apenas a liberação, enquanto que bhakti conduz a pessoa para o reino de Deus, onde todos, além de liberados, têm qualificações além. As escrituras declaram ainda que auferir a liberação é mais fácil do que auferir a devoção amorosa pelo Supremo:
muktim dadati karhicit sma na bhakti-yogam
”O Senhor facilmente outorga a liberação, mas não bhakti”. – SB 5.6.18
muktanam api siddhanam narayana-parayanah
sudurlabhah prasantatma kotisv api maha-mune
“Mesmo entre muitos milhões de jnanis liberados e yogis perfeitos, um devoto do Senhor Narayana é extremamente raro”. – SB 6.14.5
Em Sua encarnação como Vamana, a Suprema Personalidade de Deus agiu como júnior a Indra. Vamanadeva era, com efeito, o onipotente Senhor Supremo e o mantenedor de Indra, em razão do que os sábios eruditos entenderam aquilo como a amabilidade e a misericórdia do Senhor, e não que Sua aceitação de uma posição aparentemente inferior tenha sido de alguma maneira degradante. De modo similar, quando as escrituras dão mais importância a jnana e mostram bhakti como apêndice dela, isso não confunde os sábios. Eles compreendem que, embora bhakti seja às vezes posicionada secundariamente a jnana, ela está ali para ajudar e manter jnana. Todavia, a máxima escritural do Srimad-Bhagavatam 11.3.31 – bhaktya sanjataya bhaktya, “bhakti causa bhakti” – prova que a meta última da devoção é prema-bhakti, o pináculo de toda perfeição espiritual, e não jnana e moksa.
Assim foi brevemente descrita a natureza todo-penetrante, todo-atrativa, todo-avivadora, sobreexcelente, supremamente independente e auto-manifestante [sarva-vypapakatvam, sarva-vasikaratvam, sarva-sanjivakatvam, sarvotkarsa, parama-svatantra, sva-prakasatvam] de bhakti-devi, a potência interna do Senhor Supremo. Deve-se entender que aquele que prefere um processo diferente de bhakti certamente não leu as escrituras autorizadas, ou, caso as tenha lido, deve-se entender que ele é destituído de juízo e da faculdade de discriminar apropriadamente. O que mais se pode dizer de semelhante indivíduo?
ko vai na seveta vina naretaram
“Quem, exceto um não-humano, recusar-se-ia a servir o Senhor?”.
Sobre o Autor
Srila Visvanatha Cakravarti Thakura nasceu em 1674 no distrito de Nadiya, Bengala Ocidental. Ele teve dois irmãos: Sri Ramabhadra Cakravarti e Sri Raghunatha Cakravarti. Visvanatha recebeu iniciação de Sri Krsnacarana Cakravarti, em cuja casa viveu por longo tempo e escreveu muitos livros.
Em Nadiya, Visvanatha estudou as escrituras e gramática sânscrita, poesia e retórica. Mesmo quando um garoto na escola, ele era um erudito formidável que podia derrotar qualquer um em lógica e debates formais.
Embora indiferente à vida familiar, Visvanatha casou-se jovem a pedido de seu pai. Ele, todavia, permaneceu casado por pouco tempo, renunciando sua esposa e sua casa para viver em Vrndavana. Embora seus amigos e sua família freqüentemente tentassem levar Visvanatha de volta para casa, ele estava fixo em sua determinação de servir o Senhor Krsna na morada transcendental do Senhor.
Em Vrndavana, Visvanatha passou a residir no antigo bhajana-kutir (chalé ou cabana) de Srila Krsnadasa Gosvami à beira do lago sagrado Radha-kunda. Vivendo ali com um discípulo de Krsnadasa chamado Mukunda Dasa, Visvanatha meticulosamente estudou os livros de Rupa Gosvami, Sanatana Gosvami e outros Gosvamis e posteriormente comentou vários desses livros.
Srila Visvanatha Cakravarti também escreveu importantes comentários ao Srimad-Bhagavatam e ao Bhagavad-gita [o segundo, disponível em português no site www.devocionais.xpg.com.br].
Srila Prabhupada, em seus comentários, freqüentemente cita os de Visvanatha. Srila Prabhupada costumava mencionar ter sido inspirado em sua vida espiritual pelo comentário de Visvanatha ao Bhagavad-gita 2.41, onde Visvanatha Cakravarti escreve que o discípulo deve aceitar a ordem do mestre espiritual como sua vida e alma.
Srila Visvanatha Cakravarti Thakura é o autor do Sri-Gurvastakam, “Oito Versos em Glorificação ao Mestre Espiritual”. Seguindo a prática estabelecida por Srila Prabhupada, devotos em todos os templos da ISKCON cantam esses versos todas as manhãs no mangala-aratik, a primeira cerimônia de adoração do dia.
O discípulo mais famoso de Srila Visvanatha Cakravarti foi Srila Baladeva Vidyabhusana. Quando brahmanas eruditos em Jaipur desafiaram a validade do movimento do Senhor Caitanya, Visvanatha, o então líder dos seguidores do Senhor Caitanya, estava em idade muito avançada para viajar até o local e debater com os desafiadores, então ele enviou Baladeva em seu lugar. Enquanto o Senhor Krsna ditava, Baladeva transcreveu o comentário Govinda-bhasya ao Vedanta-sutra e derrotou os céticos.
Visvanatha Chakravarti - may 06
Vishvanatha Cakravarti Thakur (stephen-knapp)
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